terça-feira, 27 de setembro de 2011

É ou não é rio?

Geólogos divulgam carta aberta em que criticam e colocam em dúvida as conclusões de recente pesquisa brasileira que aponta a descoberta de um rio subterrâneo debaixo do Amazonas. 

Pesquisadores brasileiros divulgam indícios da existência de um ‘rio’ 4 mil metros abaixo do rio Amazonas, mas geólogos da Febrageo criticam a pesquisa e a terminologia escolhida para o fluxo de água. (foto: Flickr/ Spuneker – CC BY 2.0)
"Descoberto rio subterrâneo de 6 mil km debaixo do rio Amazonas”. Ao se deparar com essa notícia, muita gente logo imaginou um caudaloso fluxo de água correndo por um túnel abaixo da terra. No entanto, o suposto rio, anunciado por pesquisadores brasileiros do Observatório Nacional, nada tem a ver com essa imagem.
Não é à toa que o estudo tem causado rebuliço no meio científico, levando um grupo de pesquisadores da Federação Brasileira de Geólogos (Febrageo) a elaborar uma carta aberta à sociedade criticando as conclusões do trabalho e o uso do termo ‘rio’.
O ‘rio’ subterrâneo, batizado de Hamza em homenagem a um dos seus descobridores, o geofísico Valiya Hamza, foi anunciado no final de agosto no 12º Congresso Internacional da Sociedade Brasileira de Geofísica, chamando a atenção da mídia internacional e conquistando até um verbete na Wikipédia.
Hamza e sua orientanda de doutorado Elizabeth Pimentel, da Universidade Federal do Amazonas, analisaram dados de temperatura da água e das rochas de 241 poços de petróleo desativados perfurados pela Petrobrás na região amazônica e encontraram indícios de que existe um fluxo de água subterrâneo, de 6 mil km de extensão e até 400 km de largura, que corre por entre os sedimentos rochosos a 4 mil metros de profundidade.
Segundo os pesquisadores, o ‘rio’, formado pela infiltração da água da chuva e de outros rios, teria início no Acre e seguiria do oeste para o leste, passando pelas bacias dos rios Solimões, Marajó e Amazonas, até alcançar o mar.
       No entanto, geólogos dizem que, mesmo que exista esse fluxo de água, ele não poderia ser chamado de rio, pois se move por dentro de uma camada permeável de rochas, como o calcário e o arenito.
De acordo com o geólogo José Luiz Galvão de Mendonça do Centro Universitário de Araraquara (Uniara) – autor do artigo ‘Rios subterrâneos: mito ou realidade’ publicado na revista CH –, o fluxo de água descrito se assemelha mais a uma esponja molhada do que a um rio.
“Tratar essa água como um rio está errado”, afirma. “Um rio subterrâneo é um conceito popular; na verdade, o que foi descoberto foi um aquífero, rochas porosas que retêm água.”
Hamza conta que foi difícil definir a descoberta, mas que não seria possível chamá-la de aquífero porque o fluxo de água encontrado não fica reservado, mas segue curso e deságua do mar.

“Encontramos movimento de água que corre em área muito extensa e achamos que o melhor seria chamar de rio”, diz.

Esquema divulgado pelos autores da pesquisa mostra o ‘rio subterrâneo’ debaixo do Amazonas. (fonte: Coordenação de Geofísica do Observatório Nacional)

Passos de formiga


O estudo de Hamza indica que o fluxo de água subterrâneo é lento, com uma velocidade de 10 a 100 metros por ano, bem menor que a do rio Amazonas, que avança cerca de dois metros por segundo. Mas, de acordo com o pesquisador, isso não é motivo para não chamá-lo de rio.

“Não há definição na ciência para a velocidade mínima ou máxima de um rio”, diz. “Inclusive, no Brasil, existem rios com velocidade inferior a que encontramos, como o Rio do Sono, no Tocantins. Além disso, o nosso rio tem um fluxo de 3.900 m3/s, muito grande se comparado ao do Rio São Francisco, por exemplo.”

Hamza: “Não há definição na ciência para a velocidade mínima ou máxima de um rio”

Na avaliação do pesquisador, o uso do termo rio é adequado, pois, além do rio a que estamos acostumados, que corre na superfície, existem outros dois tipos conhecidos: o atmosférico e o subterrâneo.


Celso Dal Ré Carneiro, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), um dos geólogos que assinam a carta aberta de crítica ao estudo, confronta a análise de Hamza. Ele afirma que ‘rio atmosférico’ não é um termo científico e que o conceito de ‘rio subterrâneo’ é usado apenas para as situações em que águas fluem dentro de cavernas.

“Chamar de rio o fluxo de água indicado no estudo é o mesmo que dizer que uma caneta que tem forma de lápis é um lápis e não uma caneta. Esse estudo fere conceitos arraigados nas geociências.”

Carneiro e os demais geólogos que assinam a carta destacam que fluxos de água lentos como o indicado por Hamza “são comuns na região do rio Amazonas e estudados há tempos pelos geólogos brasileiros”.
Conclusões precipitadas

De acordo com Hamza, uma das principais implicações da descoberta do ‘rio subterrâneo’ é a explicação que ele traz para a presença de bolsões de baixa salinidade na zona oceânica em torno da foz do Rio Amazonas.

Segundo o pesquisador, a baixa salinidade dessa região, que resulta em uma fauna única, não poderia ser causada somente pelas águas doces do Amazonas.

Carneiro: “É muita suposição dizer que esse fluxo deságua no mar, bem como especular sobre sua velocidade, vazão e dimensão”

Essa tese é confrontada pelos geólogos da Febrageo. Segundo eles, a descarga do Amazonas é sim suficiente para formar os bolsões de água doce no Atlântico e não há como afirmar que o fluxo de água descoberto chega ao oceano e nem mesmo se ele é de fato doce.

“É muita suposição dizer que esse fluxo deságua no mar, bem como especular sobre sua velocidade, vazão e dimensão”, defende Carneiro. “O trabalho como um todo não é absurdo, mas as suas conclusões são precipitadas, baseadas apenas em dados indiretos de temperaturas que não foram avaliados por pesquisadores independentes.”